GUIU EM PEDAÇOS

GUIU EM PEDAÇOS
Algumas boas palavras permanecem....sempre em nossos corações!

16 de out. de 2009

Vinicius para sempre


No dia 19 de outubro de 2009, Vinicius de Moraes completaria 96 anos. 
Como estaria vivendo, hoje, o nosso amado poetinha?
Em que lugar do mundo o encontraríamos? 
Fazendo o quê? 
Bebericando ao piano de algum charmoso e esfumaçado boteco do Rio, namorando numa rede em Itapuã, passeando pela tarde ensolarada da primavera em Paris, dedicado à direção de uma nova peça, à gravação de um novo disco, ao roteiro de um novo filme, ou simplesmente sentado sozinho num banco, olhando o infinito mar, à espera de mais um poema ou mais um amor?
Provavelmente, Vinicius estaria em todas essas situações, em todos os lugares do mundo, fazendo de tudo um muito. Pois sempre foi assim, não seria diferente. Não o impressionavam os supostos limites temporais, espaciais ou artísticos. Ainda em vida, deixou de ser poeta para virar poesia em estado puro. Disse sobre ele Drummond: "Foi o único entre nós que teve a vida de poeta. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes."
A existência de Vinicius de Moraes desafia a maneira tradicional de se pensar uma biografia. Tantos anos após sua morte, ele parece um personagem mítico, feito da matéria verbo: palavras, lembranças, paixões, amizade, felicidade plena. Vinicius imortal como sua obra. Vinicius virou poema.
Nasceu Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes, e aos 9 anos chamou a irmã para ir ao cartório e adotar novo nome, o primeiro verso do homem-poema: Vinicius de Moraes. Nasceu na pequena Gávea, na pequena Zona Sul do Rio de Janeiro, e a pequenez deixou ali, partindo cedo a explorar o mundo, os mundos, cujos caminhos iluminaram todos os deuses: batizado maçom e católico, chegou-se também a Xangô, que o ensinou:
O homem que diz "dou" não dá, porque quem dá mesmo não diz
("Canto de Ossanha", parceria com Baden Powell)

Ele era homem de dar sem dizer, e de receber de braços abertos o que lhe oferecessem. Fome de viver. Sem amarras espirituais, pôde sorver o que a vida lhe reservou, e dispensar as reservas para viver além, para viver um grande amor, vários, incontáveis grandes amores, vividos como seus versos: imortais e infinitos. A fidelidade e a separação alimentaram sonetos. Toda a sua obra tinha gosto de paixões bem vividas (o que inclui o sofrer, é claro).
Nove mulheres? É de se rir, como fosse possível numerá-las, ou isso tivesse importância. Um dia lhe perguntaram: "Afinal, quantas vezes você vai casar?". A resposta: "Quantas forem necessárias". Os filhos vieram naturalmente ("Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-lo?"). Depois viriam os netos. Ele sempre em trânsito: Salvador, San Francisco, Oxford, Paris, Rio, Montevidéu, idas e vindas que se cruzavam um tanto com a história do Brasil e do mundo, outro tanto passavam ao largo do concreto, pela força de sua criação. A Segunda Guerra o tirou da Inglaterra, a ditadura afastou-o do trabalho diplomático e do Brasil.
Formado em Letras nos primeiros estudos, advogado e oficial da reserva, vice-cônsul. Formais definições que deixava invariavelmente para trás, assim como as de crítico de cinema, roteirista, intérprete, cronista, letrista, melodista, cantor, jornalista, autor teatral. Só não deixava de ser, entrementes e eternamente, poeta. Movido a paixão, não tinha medo do mundo nem evitava seus cantos obscuros, falando também da morte e da solidão.
A morte bateu-lhe à porta duas vezes, em acidentes de carro e avião. A solidão só era companheira quando era ele a visitá-la: seus amigos e parceiros foram tão numerosos quanto os amores.
Do encontro com Tom Jobim surgiram as músicas da peça Orfeu da Conceição, que viraria disco e filme ("Orfeu negro", de Marcel Camus, vencedor da Palma de Ouro em Cannes). Entre as músicas da peça, Se todos fossem iguais a você, entre as do filme, A felicidade. A parceria continuou no LP "Canção do amor demais", cantado por Elizete Cardoso. Ali estava, conduzida por uma intrigante batida de violão, aquela que é considerada a pedra fundamental da bossa nova. O violão? De João Gilberto. A música? "Chega de saudade". A música brasileira tomou outro rumo a partir daquele ponto.
Vai minha tristeza e diz a ela que
sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade,
a realidade é que sem ela não há paz,
não há beleza
é só tristeza
e a melancolia que não sai de mim
não sai de mim
não sai
No show Encontro, com João Gilberto, Tom Jobim e o grupo Os Cariocas, surgiram novos sucessos da bossa nova, que conquistariam o mundo para sempre: Garota de Ipanema, Só danço Samba, Insensatez, Ela é Carioca e Samba do Avião, todas parcerias de Vinicius e Tom. Que estranho jazz era aquele?, perguntavam-se os conhecedores internacionais. Era uma nova bossa, nem por isso capaz de aprisionar o irrequieto homem-poema, irrotulável.
Da parceria com Tom, nasceriam outras maravilhas como Água de beber, Amor em paz, Brigas nunca mais, Eu sei que vou te amar, Eu não existo sem você. O maestro e o poeta estavam acima de qualquer "movimento". Eram artesãos de verbo e som, maravilhados com a grandeza do encontro.
Com Edu Lobo, compôs Arrastão, inesquecível na voz de Elis. Com Pixinguinha, compôs a trilha sonora do filme Sol sobre a lama, de Alex Viany. Com Baden Powell, criou Samba da Bênção, Tem dó, Samba em prelúdio, Consolação, Canto de Ossanha e Samba de Oxóssi. Com o jovem Chico Buarque, boêmio e poeta como ele, concebeu as inesquecíveis Desalento, Olha Maria (com Tom), Valsinha, Samba de Orly (com Toquinho) e Gente Humilde (com Garoto):
Tem certos dias que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver sem me notar
Com Toquinho, 34 anos mais moço, encontrou novos caminhos melódicos por onde liberar seus poderosos e encantadores versos. Gravaram juntos vários discos, com sambas memoráveis, como Tonga da Mironga do Kabuletê e Cotidiano n°2 ("Hay dias que no se lo que se pasa/ Eu abro meu Neruda e apago o sol/ Misturo poesia com cachaça/ E acabo discutindo futebol"). A parceria com Toquinho rejuvenesceu-o (se isso era possível no eterno poeta sem idade) tanto que conceberam, juntos, as obras-primas da música infantil "Arca de Noé" 1 e 2, que deveriam ser matéria obrigatória na formação dos responsáveis pelos pseudo-programas infantis de hoje. Também foi a dupla que criou o clássico Aquarela. Vinicius ensina que criança é inteligente e sensível, engraçada e séria, curiosa e cruel, manhosa e inocente. Enfim, é gente.
Vinicius é o pai da casa muito engraçada, que não tinha teto nem nada, do pato pateta que acabou na panela, do leão que é rei da criação, da menininha que não deveria crescer, porque o mundo é ruim. E da sábia lição: toda aquarela, um dia, descolorirá.
As tintas de Vinicius não estão mais vivas, mas sua aquarela, magicamente, não descoloriu. Ele está sempre presente, e por isso mesmo, faz uma falta danada!
Com que humanidade se expressaria o poeta sobre o eterno ressurgir dos horrores da guerra! Com que nova "Rosa de Hiroshima" nos presentearia! Com que sabedoria ressuscitaria seu Orfeu, para ver em que cidade sem Deus e sem lei se transformou o Rio de Janeiro! Com que grandeza redescobriria o amor de todo dia, içando-o dos subterrâneos do sofrido e solitário homem moderno! Com que simplicidade nos ensinaria a ver a felicidade, bastando para isso seguir vivendo como sempre viveu...

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